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Olha o jabuti! De olho no seguro de obras públicas da nova Lei de Licitações

O termo “jabuti” é um vocábulo peculiar do ‘politiquês’, a linguagem da política. Utilizado como uma referência à expressão popular ‘jabuti não sobe em árvore’, é comumente empregado no vernáculo para descrever o fenômeno peculiar da inserção de artigos que atendem a interesses privados durante a tramitação dos projetos de lei nas casas do Congresso Nacional. A aparição de matérias alheias ao interesse da matéria principal em discussão é tão “antinatural” quanto a subida do réptil na árvore.

Nas discussões de Comissão Especial da Câmara dos Deputados destinada a proferir Parecer ao Projeto de Lei nº. 1.282, de 1995, que será uma Nova Lei de Licitações, um jabuti ensaia dar os ares de sua graça. Segundo denunciou a Folha em 12/7/2018, o então relator do projeto de lei, deputado federal João Arruda (MDB-PR), que deixou o mandato para disputar o governo do Paraná pelo MDB nas últimas eleições gerais, havia defendido em seu relatório uma medida que, caso aprovada, beneficiaria o conglomerado de empresas controlado por seu sogro e sua mulher: a JMalucelli, que é líder em seguro garantia no Brasil.

O seguro garantia de execução do contrato é uma modalidade de seguro no qual o tomador do seguro (no caso, a empreiteira contratada pelo setor público) adquire a apólice em favor de um terceiro, que será o beneficiário da mesma na hipótese de sinistro, que no caso desse seguro trata-se do inadimplemento de uma obrigação contratual assumida pelo tomador. No âmbito da Administração Pública, o exemplo mais didático do uso do seguro seria a cobertura da execução de contrato para a construção de uma ponte ou viaduto. Caso a empreiteira contratada não consiga cumprir a sua obrigação, a seguradora é responsável por indenizar, restituindo valores ao Estado ou por ressarcir o poder público, sendo que na segunda hipótese, ela mesma executará a obra direta ou indiretamente – através de terceiros por ela contratados para a execução do serviço.

O seguro garantia é amplamente utilizado pela Administração Federal nos Estados Unidos, onde é chamado de Performance Bond. Quando exigido em um contrato administrativo para a realização de uma obra pública, o seguro garantia é uma forma eficiente de regulação através de um contrato, garantindo a execução da obra pública, assim como a preservação dos recursos públicos aplicados naquele projeto de maneira adequada.

No seguro garantia, o processo de subscrição da apólice – o procedimento por meio do qual uma seguradora avalia os riscos envolvidos na emissão de uma apólice – é distinto dos seguros gerais, como os seguros de automóveis. Enquanto nesses, a possibilidade de sinistro é tida como possível, no seguro garantia, em que a importância segurada tende a ser mais elevada, a seguradora apenas emite a apólice se vislumbrar como remota a possibilidade de o sinistro acontecer.

Essa posição distinta da seguradora, chega a se aproximar da ideia de certificação. Quando uma seguradora, dotada de profunda expertise na aferição de riscos, aceita subscrever um risco de tal complexidade, ela sinaliza ao Estado que acredita na capacidade executória do projeto pela empresa tomadora do seguro. Afinal, a ocorrência de sinistro, nesses casos, causa grande prejuízo à seguradora, que atuará preventivamente, e durante a execução do projeto, para evitar a realização do risco que lhe representaria perda financeira substancial.

Daí decorre o interesse público na matéria e a sua relevância no momento atual, no qual a crescente percepção de que o cometimento de atos corrupção por agentes públicos em conluio com empreiteiras durante a contratação e execução de obras atrasa o desenvolvimento nacional e clama por inovações e propostas disruptivas no campo normativo.

O episódio denunciado pela Folha, que não é isolado, serve de alerta para a sociedade civil organizada para que amplie o controle social sobre a tramitação dos projetos de lei sobre os procedimentos de contratação pública.

Na literatura sobre partidos políticos há uma interessante distinção entre as agremiações partidárias e facções que cabe relembrar. Enquanto os verdadeiros partidos políticos atuam na esfera pública na persecução do bem comum, as facções caracterizam-se pela atuação na esfera pública em prol do benefício de seus interesses privados. O compadrio, o clientelismo, assim como o fisiologismo são todos externalizações desse comportamento faccioso, que também desencadeia o cometimento de atos de corrupção.

O seguro garantia constitui um instrumento de governança contratual capaz de garantir o cumprimento do contrato de obra no prazo, preço e qualidade contratados. Ele tem o potencial de auxiliar no saneamento de um problema já delimitado: tanto agentes públicos como empresas privadas não encontram incentivos para elaborar projetos de qualidade e executá-los dentro do prazo. Ao contrário, no sistema atual há um problema de incentivos – a ambas as partes da relação contratual existem incentivos para a elaboração de projetos de baixa qualidade e para uma execução que se eternize. Esse ambiente propicia a celebração de sucessivos aditamentos contratuais, que elevam preços e prazos – e são o locus perfeito para a prática de atos de corrupção.

O fato de o seguro garantia ter o potencial de contribuir para a mitigar problemas detectados na relação que se estabelece entre agentes públicos e privados durante o processo de contratação de obras não significa que o mesmo irá realizar este potencial. O processo legislativo está sujeito à ação dos mencionados grupos facciosos, e além de ser notoriamente vulnerável à influência do poder econômico.

A realização da finalidade do seguro garantia aplicado às obras públicas decorre da estruturação de um desenho regulatório adequado, capaz de garantir, por um lado, a viabilidade econômica deste produto para os seguradores e resseguradores e, por outro lado, a geração de incentivos ao Estado para que cumpra suas obrigações de pagamento. Além disso, é fundamental a inserção de mecanismos que permitam a interlocução entre seguradores e segurados visando o aprimoramento e detalhamento de projetos e, sobretudo, um desenho regulatório que fomente o aprimoramento da avaliação do risco pelas seguradoras.

Daí a oportunidade e a conveniência de discutir a reformulação e ampliação deste instrumento de governança contratual no âmbito das discussões de uma nova Lei de Licitações. O seguro garantia surgiu como uma alternativa possível de fortalecimento do procedimento de contratação de obras e substituição do atual quadro de incentivos à inexecução contratual por outro que incentive o adimplemento das obrigações assumidas por particulares e pelo Estado.

Localizado no campo da regulação como uma estratégia focada no desempenho de função regulatória por terceiros, o seguro garantia aplicado em contratos de obras é altamente inovador e abre uma série de possibilidades.

O poder legislativo, ao identificar a existência do mencionado problema de incentivos na relação entre agentes públicos e privados para a contratação de obra, reconheceu a deficiência da atual estratégia normativa, centrada na noção de comando e controle, de caráter eminentemente repressivo. Para lidar com esse problema, entrou na agenda legislativa a discussão de nova alternativa, focada no desenvolvimento de uma nova estratégia centrada na apresentação obrigatória do seguro garantia nas obras públicas a partir de determinado valor, que segue em discussão.

Em consequência, a reforma legislativa ao preconizar o uso da legislação, não para reforçar o controle repressivo, mas para trazer o seguro no bojo de uma nova estratégia regulatória, sinaliza avanço institucional e privilegia a inovação. Em contrapartida, o Estado oferece às seguradoras a geração de um extraordinário mercado, no qual a venda de apólices de seguro garantia torna-se obrigatório.

Propostas no sentido de isentar a seguradora de responsabilidades inerentes ao exercício dessa função regulatória, como o acompanhamento de projetos ou a exclusão da chamada “cláusula de retomada”, que permite à seguradora assumir, direta ou indiretamente, através de terceiro por ela contatado, executar contrato após a configuração de um sinistro, beneficiam as seguradoras em detrimento dos interesses da Administração Pública. A discussão sobre o seguro garantia deve manter-se nos trilhos, influenciada pela técnica, pela opinião de especialistas, porém livre do aparecimento de jabutis!

*Vítor Boaventura, advogado, sócio de ETAD – Ernesto Tzirulnik Advocacia

Fonte: Jornal O Noroeste