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2019 trouxe mudanças significativas no campo dos seguros

A época do ano convida a olhar as transformações do mercado segurador brasileiro ao longo da década que está se encerrando, e que foi palco de uma mudança estrutural. Os seguros brasileiros foram modelados, durante quase setenta anos, no regime de monopólio de resseguro. O monopolista, Instituto de Resseguros do Brasil (IRB), não apenas definia os conteúdos dos contratos, mas também, ao fixar as taxas do resseguro, regulava os prêmios a serem pagos. Além disso, o IRB era legalmente incumbido das regulações de sinistro e, com isso, definia a interpretação das coberturas.

Depois de muitas tentativas frustradas de abertura do mercado de resseguro, período durante o qual foi abandonada a política de integração dos seguros no projeto desenvolvimentista que conformava o desenho institucional vigente no Brasil de então, o mercado foi, finalmente, aberto pela Lei Complementar nº 126/2007, regulamentada em 2008.

No crepúsculo do período monopolista, entre a edição da Lei Complementar e sua regulamentação, no ano seguinte – quando o primeiro concorrente foi autorizado a operar, efetivamente encerrando o monopólio de resseguro – o IRB se aproveitou do poder que ainda tinha para uniformizar, com critérios prejudiciais para segurados e beneficiários, os padrões de resseguro aplicáveis em todo o território nacional, notadamente nos seguros de grandes riscos.

Introduziu, em 2007, o conceito de “dano físico à propriedade tangível”, restringindo a cobertura dos seguros de danos em geral, como de riscos de engenharia e de riscos operacionais. Além disso, entre outros exemplos, transformou a simples prorrogação dos contratos de seguro, quando necessário maior tempo para a conclusão da obra de engenharia, numa via crucis com traçado ao arbítrio dos soldados de Cesar.

Os decantados benefícios da abertura do mercado eram o aumento da capacidade de subscrição de riscos e a modernização dos serviços securitários em geral, mas a década seguinte à abertura frustrou as expectativas. O apetite dos resseguradores do mercado aberto nem de perto equivale às amplíssimas políticas de subscrição que o IRB manteve durante grande parte do período do monopólio. O mercado se tornou mais restritivo e os chamados riscos declináveis, que antes correspondiam aos contrários à segurança nacional e aos tecnicamente inasseguráveis, passaram a constituir uma fatia importante. Os resseguradores concorrentes, à falta de lei que os orientasse noutro sentido, exibiram falta de apetite para muitos riscos. Há setores que ficaram sem seguro; outros, com seguro sem conteúdo útil; e, outros, com franquias tão elevadas, que se pode dizer que as apólices existem apenas para cumprir determinações legais ou imposições de governança corporativa (compliance).

Além disso, as coberturas se tornaram mais restritivas e conceitos securitários, forjados ao longo de séculos, ganharam indecorosa elasticidade nas regulações de sinistro, com interpretações que outrora jamais seriam aceitas. Os resultados da abertura, desacompanhada de um regime jurídico protetivo dos segurados e beneficiários, garantidor dos conteúdos dos seguros e de políticas de expansão da oferta de seguros, não poderiam ser outros. No setor segurador e no próprio Judiciário, já se vê a expansão de conceitos que restringem a eficácia dos seguros, notadamente o de agravamento do risco. Nos seguros de garantia e de responsabilidade civil de administradores de empresas (D&O), bastou uma crise conjuntural para que as seguradoras pugnassem pela não cobertura nos casos em que há mera acusação de ato doloso, sem condenação definitiva.

Além de a década, em geral, ter sido um período de transformações no mercado segurador brasileiro, o ano de 2019, em especial, testemunhou mudanças estruturais repentinas por meio de Medidas Provisórias. O governo editou duas MPs sobre seguros que acenderam o debate público. A primeira, e mais conhecida, é a Medida Provisória 904, ora sob análise do Congresso Nacional, que extingue, a partir de 1º de janeiro de 2020, o Seguro Obrigatório de Danos Pessoais causados por Veículos Automotores de Vias Terrestres (seguro DPVAT).

Na visão do governo, o seguro DPVAT é redundante (outros programas sociais, como SUS e BPC, atenderiam aos mesmos fins) e ineficiente (sobretudo em virtude de fraudes e alto custo de supervisão). No entanto, a decisão de extinguir o seguro DPVAT é, além de afoita, míope. É necessário reformar o sistema para corrigir seus gargalos, não o implodir por inteiro à revelia de discussão com a sociedade civil. O DPVAT é um seguro que já foi socialmente assimilado, capaz de cumprir melhor sua função do que qualquer seguro de responsabilidade civil, e resta apenas corrigir as distorções, acabando com a dispersão dos fundos de prêmios arrecadados para robustecer o valor das indenizações pagas às vítimas do trânsito.

Já a Medida Provisória 905 desregulamenta a profissão de corretor de seguros, que deixa de ser supervisionada pela SUSEP. Essa desregulamentação é tributária das diretrizes da Lei 13.874/19, a chamada “Lei da Liberdade Econômica”. Com a MP 905, que impõe uma mudança de paradigma, substituiu-se a fiscalização estatal dos corretores de seguros pela autorregulação. Provavelmente, mais uma vez, a raposa (IBRACOR) cuidará do galinheiro e arrecadará fortuna.

No aspecto regulatório, a Superintendência de Seguros Privados (SUSEP) buscou facilitar o desenvolvimento das chamadas insurtechs (startups do setor securitário), abrindo consulta pública sobre implantação de um sandbox regulatório para o setor. Oriundo da experiência estrangeira, sandbox é um ambiente regulatório experimental para fomento da inovação. Sua premissa é que requisitos regulatórios mais flexíveis viabilizam o teste de serviços e produtos inovadores, que, de outro modo, no ambiente ordinário, talvez não prosperassem.

A expectativa é que as normas do sandbox securitário entrem em vigor em janeiro de 2020 e que dez projetos sejam selecionados para participar, pelo prazo de até 36 meses. Se mantidos os termos apresentados pela SUSEP na consulta pública, as insurtechs poderão subscrever apenas certos riscos patrimoniais de menor escala (por exemplo, roubo, furto e dano de automóveis, bicicletas, patinetes, celulares e aparelhos eletrônicos em geral). O ambiente regulatório experimental não inclui modalidades mais complexas de seguro, como vida, grandes riscos e responsabilidade civil. O risco, ainda sem controle algum, é o da assimilação das insurtechs pelos grandes grupos seguradores e financeiros.

O Superior Tribunal de Justiça (STJ), por sua vez, sumulou entendimento sobre as consequências da embriaguez para o seguro de vida. A Súmula 620, apesar de editada às vésperas do recesso judiciário do ano passado, ganhou repercussão ao longo de ano. Ela estabelece, em síntese, que a seguradora não pode recusar o pagamento aos beneficiários do seguro de vida simplesmente alegando a embriaguez do segurado. Outra novidade é a Súmula 632 do STJ, que determina a incidência da correção monetária das indenizações desde a data da contratação do seguro, e não desde a data da ocorrência do sinistro ou da suportação dos prejuízos. Nascida a partir de casos envolvendo seguros de vida, a orientação vinculante abrange seguros de danos, em certos casos levando ao enriquecimento injustificado por exceder ao valor do efetivo prejuízo.

Em 2019, também se viu uma mudança estrutural na composição acionária do IRB, que agora está mais pulverizada, sem bloco de controle definido. Em fevereiro, um fundo gerido pela Caixa Econômica Federal vendeu sua participação de 8,9%. Em julho, após a promulgação estratégica da Circular 589 da SUSEP, a União (via BNDES) e o BB Seguridade se desfizeram da totalidade de suas participações.

Por fim, o primeiro projeto de lei de contrato de seguro brasileiro (PLC 29/2017), que tramita desde 2004, impulsionado pelo Instituto Brasileiro de Direito do Seguro – IBDS, após a convergência das entidades técnicas (IBDS), de consumidores (BRASILCON e IDEC), empresariais (CNI e FIESP), assim como do setor segurador (CNSeg) e da corretagem de seguros (FENACOR), avançou para parecer favorável do relator na Comissão de Constituição, Cidadania e Justiça do Senado Federal (Rodrigo Pacheco, DEM-MG), embora haja rumores de que sofre a oposição da área econômica do governo (SUSEP, BB Seguridade etc.).

*Ernesto Tzirulnik, advogado, presidente do Instituto Brasileiro de Direito do Seguro (IBDS), coordenador da comissão de juristas e técnicos que elaborou o anteprojeto de Lei de Contrato de Seguro (PLC 29/2017)