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O seguro garantia e as tentativas de subtração de sua utilidade

Por Carlos Eduardo S. Leal de Carvalho e Mauricio Luis Pinheiro Silveira

Uma conjunção de fatores desencadeou nos últimos anos um grande número de reclamações de sinistro no ramo do seguro garantia, especialmente na modalidade “execução de contratos”, provocando reflexos tanto no mercado segurador, de um lado, quanto nos tomadores e segurados, de outro.

Em linhas gerais, o que se objetiva com esse tipo de seguro é a garantia dos interesses do segurado relacionados ao cumprimento de obrigações a cargo de terceiro, denominado tomador. Isto é, caso o tomador do seguro venha a inadimplir sua obrigação perante o segurado, ficará configurado o sinistro, cabendo à seguradora o pagamento de indenização no valor dos prejuízos suportados em razão do inadimplemento, sempre respeitando o limite fixado na apólice.

Para se ter ideia da importantíssima função desse seguro, o IRB Brasil Resseguros S.A., antigo ressegurador monopolista no Brasil e, ainda hoje, player dominante no mercado ressecuritário, não deixa dúvida em Manual dedicado ao seguro garantia, que uma vez caracterizado o inadimplemento do tomador do seguro, “

[o] Seguro-Garantia transforma o Segurador em principal pagador”[1].

O seguro garantia é, portanto, um dos fatores essenciais para viabilizar a celebração de muitos contratos, sobretudo de empreitada, à medida que confere ao credor da obrigação a necessária tranquilidade de que um eventual inadimplemento, após a conclusão de regular procedimento de apuração de sinistro, será pronta e eficazmente reparado.

Considerado exclusivamente em sua dimensão teórica, trata-se de ferramenta de enorme eficácia e com custo convidativo, especialmente se comparado com outras como a fiança bancária.

Ocorre, no entanto, que essa realidade, lamentavelmente, não tem encontrado eco na prática do mercado segurador.

Temos identificado com apreensão em nossa experiência com a advocacia no ramo de seguros, comportamentos, ora dos tomadores, ora do mercado segurador, que, ao fim e ao cabo, terminam por subtrair a utilidade do seguro garantia.

Referimo-nos aqui não somente ao fato de que, em aproximadamente duas décadas de dedicação às lides securitárias, em raras oportunidades nos deparamos, nos seguros garantia, com o pagamento voluntário da indenização por parte de seguradoras, mas também a uma prática que, lamentavelmente, tem se tornado cada vez mais frequente que é a da propositura de ações judiciais por tomadores de seguro garantia, com vistas a suspender o curso de procedimentos de regulação, após ter sido a seguradora comunicada, pelo segurado, a respeito de circunstâncias que podem vir a configurar um sinistro ao abrigo da garantia securitária contratada.

O argumento utilizado é o da existência ou da possibilidade de início iminente de conflito judicial ou arbitral entre as partes do contrato principal, segurado e tomador do seguro, conflito esse que terá por objetivo apurar as responsabilidades pelo término daquela relação contratual, de sorte que, no dizer do tomador, a seguradora deveria aguardar a definição que se dará àquele conflito para, só então, regular o sinistro e definir se há ou não cobertura do seguro.

Como já mencionado, o principal objetivo do seguro garantia é impedir que o segurado sofra as indesejadas consequências de eventual inadimplemento do tomador do seguro.

Sem dúvida, por força das particularidades que cercam o contrato de seguro, não se pode exigir da seguradora, logo após cientificada a respeito do inadimplemento do tomador, o imediato pagamento da indenização, até porque é seu dever levar a termo o procedimento de regulação do sinistro, por meio do qual, após os exames e consultas necessários, deverá concluir pela ocorrência ou não do sinistro.

É despropositado e paradoxal, todavia, imaginar-se que a seguradora poderá ser compelida a aguardar, em regra por anos, o desfecho da controvérsia havida entre segurado e tomador (levada a juízo ou submetido a procedimento arbitral) para, só então, concluir pela existência ou não de sua obrigação indenizatória. Com efeito, postergando-se por anos a obrigação de indenizar da seguradora, tornaríamos inócua a garantia securitária contratada justamente para evitar a exposição do segurado às consequências danosas do inadimplemento do tomador. Além disso, a seguradora também ficaria com uma contingência de longa duração, a exigir a constituição e provisões de longo prazo.

Em outras palavras, fosse possível a suspensão da regulação de sinistro, e mesmo o pagamento da indenização caso a seguradora concluísse pelo inadimplemento do tomador, sempre que houvesse conflito entre este e o segurado, o seguro garantia, sem dúvida, perderia sua finalidade.

Seria muito mais vantajoso para o segurado nesse caso deixar de contratar o referido seguro e obter, ele próprio, garantias do tomador que pudessem, se o caso, assegurar o sucesso da execução de futura sentença condenatória que reconhecesse o inadimplemento. Nesse caso, bastaria o segurado exigir, para a proteção dos seus interesses, que lhe fossem fornecidas as garantias que o tomador do seguro hoje fornece à seguradora – as chamadas contragarantias.

Não é esse, todavia, ou ao menos não deveria ser, o intuito dos segurados, nem tampouco das seguradoras que comercializam o seguro garantia. O que se quer é o desenvolvimento e a expansão dessa tão importante modalidade de seguro, o que, naturalmente, pressupõe o pronto desenvolvimento da regulação de sinistro e o pagamento da indenização tão logo concluídas as apurações das responsabilidades pela seguradora.

É possível notar que a jurisprudência está atenta a essa questão, havendo julgados em cada vez maior número prestigiando a obrigação da seguradora de regular o sinistro, independentemente de eventual conflito judicial ou arbitral entre segurado e tomador do seguro.

O Tribunal de Justiça de São Paulo, por exemplo, analisando causa em que se veiculou pretensão de interromper regulação de sinistro, no âmbito de apólice de seguro garantia, até que concluído litígio arbitral instalado entre segurado e tomador do seguro,[2] destacou que “[o] processo administrativo de regulação de sinistro tem por escopo unicamente trazer esclarecimentos pertinentes à causa, circunstâncias e consequências de certo evento envolvendo as partes constantes da apólice de seguro, e assim apurar da ocorrência do risco, qual a sua extensão, e se do mesmo decorreria a cobertura securitária tratada. Neste mesmo procedimento ainda é levantado se houve regular cumprimento por parte do segurado de suas obrigações legais e contratuais, possibilitando nestes moldes identificar-se se deve haver a indenização prevista na apólice ou, ao contrário, existente situação que resulta na exclusão da cobertura acertada.”

Prossegue o acórdão do Tribunal paulista, repelindo a argumentação ordinariamente articulada por tomadores do seguro de que a simples existência do procedimento de regulação de sinistro lhe traria prejuízos, além de enfatizar que eventual prestação indenizatória pela segurada poderia ser objeto de discussão independente a ser estabelecida com a seguradora:

“Evidentemente, no mesmo âmbito, confirmada que seja a hipótese de indenização, seguirá o processo administrativo em questão para estabelecimento da indenização devida, segundo os parâmetros contratuais previamente negociados entre as partes.

Ora, tendo, o processo antes aludido, por finalidade essas atividades mencionadas, não se justifica, concretamente, os receios aludidos pela agravante de que possa haver, caso prossiga tramitando o processo de regulação de sinistro, prejuízos econômicos para ela.

Isso se afirma porquanto sempre será possível à agravante, mesmo que a agravada Swiss Re entenda ser caso de indenizar a agravada Gafisa, obter revisão na sede própria a respeito do quanto se consubstancie no comentado processo administrativo, não ficando impedida de buscar defesa dos seus interesses, caso realmente na regulação de sinistro ocorra aquilo que pressupõe como possível resultado daquela.”

Em outro recente e análogo precedente, também do TJSP,[3] encontramos precisa advertência a respeito do risco que representa o tema em questão: “(…) a imediata suspensão do procedimento de regulação, nessa linha de argumentação, também poderia levar à desconfiança na conveniência e eficácia da utilização dessa modalidade de seguro e, consequentemente, na credibilidade da própria autora”.

Nesse mesmo julgado ficou registrada, ainda, a contradição existente no comportamento do tomador do seguro que, num primeiro momento, ou seja, quando da celebração do contrato principal com o segurado, aceitou a utilização do seguro como forma de garantia para a hipótese de inadimplemento, e, depois, quando instalado um procedimento de regulação de sinistro, passa a sustentar que há abuso por parte do segurado e da seguradora no tocante ao desenvolvimento daquele procedimento:

“A utilização do seguro garantia foi prevista no contrato. (…) A possibilidade de um desentendimento entre as partes sempre existiu. Faz parte da natureza das relações comerciais e jurídicas. Parece estranho que, surgindo esse conflito de interesses, sempre previsível, a agravante BKO, que concordou com a celebração do seguro garantia, de imediato, antes mesmo da manifestação do Juízo Arbitral pleiteie a suspensão do procedimento administrativo de regulação”.

No mesmo sentido decidiu o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, ao julgar, muito recentemente, a apelação nº 0030501-36.2017.8.19.0001.[4]

Portanto, também pelo prisma da vedação do comportamento contraditório, o venire contra factum proprium, não faz sentido pretender a suspensão do procedimento de regulação, e mesmo do pagamento de eventual indenização securitária, pelo simples fato de que foi judicializada a discussão a respeito da existência ou não do inadimplemento do tomador do seguro.

Atentas para o perigo – inclusive de ordem comercial – que representam pretensões dessa natureza, as seguradoras, que naturalmente figuram no polo passivo das demandas em litisconsórcio com o segurado, vêm se manifestando de modo harmônico com o produto comercializado, prestando importantes esclarecimentos sobre a inexistência de dependência do seguro garantia em relação aos possíveis litígios entre o segurado e o tomador do seguro.

A seguradora que figurou no processo que deu origem ao primeiro precedente judicial acima mencionado advertiu, por exemplo, que “a arbitragem a ser levada a efeito estará restrita à análise do contrato firmado entre autora e[segurada], mas jamais poderá ter sob seu alcance o contrato de seguro ”. E concluí: “a arbitragem a se realizar não terá sob seu alcance a análise do contrato de seguro, e, decorrentemente disto, a apuração dos valores eventualmente sob responsabilidade dessa seguradora não será apurado pela arbitragem, mas pela própria regulação do sinistro”.

De fato, não faz qualquer sentido tentar vincular a obrigação da seguradora de promover a regulação do sinistro ou de efetuar o pagamento da indenização devida com o resultado do eventual litígio entre tomador e segurado. As obrigações da seguradora são autônomas.

Ainda que em eventual litígio com o tomador saísse vencido o segurado, essa decisão não vincularia a seguradora, a qual teria plena liberdade para, exercendo seu direito de regresso, promover a execução das contragarantias, desenrolando-se, entre ela e o tomador, os debates necessários para a obtenção, ao final, de provimento que assegurasse o direito de uma ou de outro.

O que se deve ter em mente, portanto, é a distinção entre os dois procedimentos: de um lado, a regulação e liquidação do sinistro, pelo que se obrigou a seguradora, a ser realizada nos termos do contrato de seguro e das normas regulamentares; de outro lado, o processo judicial ou arbitral, por meio do qual se discutirão as responsabilidades entre segurado e tomador do seguro.

A seguradora possui não só o direito, mas o dever de realizar os atos investigatórios necessários para a aferição da existência ou não de sua dívida indenizatória, fundada no contrato de seguro, bem como a quantificação dos danos porventura indenizáveis. É um serviço que ela presta ao segurado. Para este, e também para a seguradora, o tempo é fator precioso, não apenas porque elementos essenciais para a aferição das causas e consequências do sinistro se perdem com o seu transcurso, mas também porque o pronto cumprimento da prestação securitária, após a regulação de sinistro, constitui a razão de ser dessa modalidade de seguro.

E que não se perca de vista, nesse exato sentido, que de nada adianta garantir a autonomia da seguradora e o seu poder/dever de regular o sinistro se, concluído esse procedimento, não houver o cumprimento exato de sua obrigação de indenizar, sob pena de, como já se tem observado na prática, os segurados deixarem paulatinamente de contratar o seguro garantia por conta da falta de confiança na sua eficácia.

Carlos Eduardo S. Leal de Carvalho e Mauricio Luis Pinheiro Silveira, são advogados especializados em Direito do Seguro e sócios do escritório ETAD – Ernesto Tzirulnik Advocacia

[1] Seguro-Garantia; Manual editado pela Coordenadoria de Comunicação e Marketing Institucional (COMIN) do então IRB Brasil Resseguros S.A.; abril/1999, p. 9

[2] Agravo de Instrumento nº 2065505-50.2013.8.26.0000; 10ª Câmara de Direito Privado do TJ-SP; Rel. Des. João Batista Vilhena, julgado em 18/03/2014

[3] Medida Cautelar nº 2000939-58.2014.8.26.0000, 3ª Câmara de Direito Privado do e. TJ-SP, Rel. Des. Viviani Nicolau, j. 20/01/2014

[4] TJ-RJ, 12ª Câmara Cível, j. 14/08/2018

Fonte: Portal Segs