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Brumadinho tem um sigilo perturbador, escreve Wolf Ejzenberg

Vale queria confidencialidade de seguro. Teria sido assinado no dia do desastre.

A barragem da Mina Feijão em Brumadinho rompeu-se em 25 de janeiro. Fotos Públicas/ Ricardo Stuckert.

No final do século 18, Immanuel Kant escreveu o ensaio “À Paz Perpétua” procurando estabelecer as bases do que seria um tratado de paz efetivo e duradouro para a humanidade.

À parte os debates a respeito de seu caráter idealístico, o ensaio kantiano não deixa de servir como orientação de cunho filosófico e moral para a construção de bases sociais menos injustas e mais condizentes com ideários humanistas.

Entre os artigos eleitos pelo filósofo alemão para o tratado de paz, encontra-se o que questiona a possibilidade da existência de informações ou compromissos secretos, considerando que se alguma informação tivesse de ser tratada fora da esfera pública, necessariamente seria porque seu conteúdo, de algum modo, constrangeria os pactuantes, ou ameaçaria os demais integrantes da sociedade.

Segundo Kant, “uma máxima que eu não posso deixar tornar-se pública sem ao mesmo tempo frustrar minha própria intenção, que tem de ser ocultada se ela deve ter êxito e para a qual não posso me declarar publicamente” representaria uma grave ameaça de injustiça contra a sociedade.

Lembrando dessa lição, se pode perceber como é preocupante a notícia veiculada pelo jornal O Estado de São Paulo. A Vale teria solicitado à seguradora Allianz a assinatura de um compromisso de confidencialidade em relação ao conteúdo do seguro de responsabilidade civil.

Isso teria acontecido no dia do colapso da barragem de Brumadinho, embora pouco importe quando se avençou o ocultamento do trato a respeito desse seguro que, para barragens, possuiria limite indenizatório de centenas de milhões de dólares.

Qual o efeito do sigilo a respeito dos seguros de responsabilidade civil contratados justamente para propiciar o pagamento de indenizações às vítimas do acidente?

Nesse tipo de seguro são protegidas duas diferentes esferas de interesses, “o do segurado contra os efeitos patrimoniais da imputação de responsabilidade e o da vítima à indenização, ambos destinatários da garantia, com pretensão própria e independente contra a seguradora”, como reconhecido no Enunciado 544 do Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal por ocasião da VI Jornada de Direito Civil (2013).

Se é assim, o compromisso de sigilo agride a esfera de direitos das inúmeras vítimas da recente catástrofe.

Tomando a lição kantiana, o sigilo, nesse tipo de relação contratual, se justificaria para a proteção de interesses da Vale, seus administradores e seguradoras em detrimento daqueles afetados pelo sinistro.

A falta de transparência sobre condições de cobertura e limites indenizatórios ajudaria as seguradoras a negociarem melhor, logicamente para si, os montantes das indenizações devidas às vítimas.

As seguradoras e seus resseguradores são naturalmente simpáticos ao arrefecimento do apetite indenizatório das vítimas. Isso sem contar que, sob o sigilo, as partes podem negociar livremente sem a censura dos vitimados.

Isso até poderia parecer natural não fosse a lei dizer claramente que os seguros de responsabilidade são celebrados para garantir os pagamentos devidos às vítimas (art. 787 do Código Civil) e o próprio Superior Tribunal de Justiça já haver reconhecido o direito de as vítimas acionarem diretamente as seguradoras de responsabilidade civil das apólices contratadas com os responsáveis pelos danos.

De todo modo, uma vez compreendido que o sigilo é incompatível com a finalidade social desse tipo securitário, tudo leva a crer que o noticiado compromisso sigiloso apenas tende a criar uma enxurrada de pedidos de exibição de judicial para que se revelem as entranhas contratuais.

Se não há condições escusas ou objetivos incivis, não há nada a temer.